p’lo outback Australiano

Foi depois do primeiro voo desta nossa volta ao mundo que chegámos de Díli a Darwin, na Australia. Uma hora e meia: de medos, de excitação, de nervosismos, de anseios. Uma hora e meia de nós.

Com 9 horas e 30 minutos de avanço, face ao fuso horário de Portugal, souberam pela primeira vez, ao seguir pelo computador, que chegámos bem. Sãos e salvos, apesar de todo o medo sentido por um de nós nos ares. Mas, o pior, estava ainda para vir:

Pegámos nas mochilas, afeitos a um novo mundo, e acabaram ali mesmo com os nossos sorrisos, quando barrados pela imigração. Na verdade, a falha foi nossa, mas não fazíamos ideia de quão grave havia sido.

Começaram por perguntar-nos se trazíamos nas mochilas bens alimentares. Não – respondemos, sem que pudéssemos alguma vez ter noção do perigo presente nas nossas palavras.

A verdade é que tínhamos uma das mochilas cheias de presentes recebidos no ano novo, vindos de Portugal: coisinhas boas e do bem. A nossa querida quinoa. Os nossos queridos chouriços de soja. A aveia, o côco ralado, a manteiga de amendoim. Mas achámos que seria tão irrelevante, que sem qualquer sentimento de omissão respondemos.

Sabíamos ser proibido entrar com carne, e isso não tínhamos… portanto, lavámos assim as nossas mãos!

Começámos por ser informados que no RX tinham identificado a comida e acabámos, ali mesmo, com as mochilas abertas.

A sorte? A sorte é que, de coração, não agimos por mal. Não havia nada a esconder. Fomos irresponsáveis e agimos com uma leviandade não desejável – certo. Mas nada mais que isso. E as lágrimas encheram-nos os olhos, na eminência de ficarmos sem nada.

Agora, recordamos com gratidão a voz daquele senhor baixinho e sério: “Arrumem tudo e podem ir, mas não repitam a proeza. Numa situação normal, tinham a pagar 400 dólares de multa”.

E corremos. Fugimos dali o mais depressa que conseguimos.

Tínhamos, sem dúvida, mil borboletas na barriga.

Mas abraçámo-nos: felizes. E aliviados!! Tão aliviados.

Na sala de espera, no aeroporto, encontrámos o nosso couchsurfer. No carro, à nossa espera, tinha a sua esposa. E, para eles, há poucas palavras. Foram incríveis! Do primeiro, ao último momento. Conversámos, partilhámos histórias de vida, profissionais, viagens, amores; demos a volta à cozinha, fizemos iguarias, vimos o pôr-do-sol e fomos claramente bem-afortunados.

Em Darwin, acabámos por ficar um dia a mais, e em todos eles dormimos muito, batendo recordes de 12 horas! Na cidade de Darwin, conseguimos encontrar uma amiga timorense, de um amigo português que conhecemos em Díli. Mas o tempo nem sempre esteve do nosso lado: embora quente, de chuva.

Foi também lá que trocámos o nosso dinheiro e deu ainda tempo para visitar o afamado ao museu da cidade, sobre a Australia, onde pudemos conhecer todos os animais venenosos habitantes do país e a realidade face à cultura tradicional – a história das pessoas aborígenes.

Estas, as pessoas realmente nativas, sofreram muito. E sofrem ainda hoje. Sao pretas. Têm pelos. Comportam-se de uma forma diferente. Andam descalças. São livres. E não aceitam, nem conseguem desculpar aquilo que os famosos e bravos brancos fizeram quando lá chegaram. Não obstante o genocídio, roubaram crianças, roubaram terras, roubaram vidas. E hoje, são ainda vítimas de racismo perante a sociedade que lá habita, tirando claro raras excepções daqueles que lhes dedicam a vida. E esta é, na verdade, a verdadeira história da magnífica Austrália, que de magnífico tem pouco.

– Mas foram eles, os aborígenes, que por várias vezes nos deram boleia e que sempre chegaram perto para conversar, pelas ruas desertas das cidades quase fantasma do norte. E sim, estão desfasados da sociedade, desfasados do mundo em que as obrigam hoje a viver. –

Nos três dias passados em Darwin, ficámos inevitavelmente chocados com o vazio da cidade, sendo que claro vínhamos habituados a países de terceiro mundo, com pessoas sempre por todo o lado. Custou-nos a frieza das pessoas e fez-nos falta o calor humano, os sorrisos e a cortesia.

Ao quarto dia, partimos. Deixamos a casa cedo, de manhã. Arrumamos tudo e saímos. Caminhámos até à estrada principal para nos pormos à boleia e ali ficámos. O tempo estava encoberto, fazia algum calor e volta e meia chovia, em forma de aguaceiro. Na paragem de autocarro mais próxima encontrámos onde abrigar as mochilas e ali ficámos, por perto, de placa à vista e dedo esticado, à vez.

E, nos entretantos, defrontámo-nos com as mais estranhas pessoas: de bêbados, a loucos: calhou-nos passar de tudo por nós.

O dia passou-se, e não houve ninguém que parásse. Nem tão pouco para oferecer ajuda. Ninguém. O lugar talvez não fosse o melhor, mas não era de todo o pior. E os carros, esses, tinham por certo onde parar – se quisessem.

Já quando o sol se preparava para se despedir no horizonte, parou uma senhora. Disse-nos, com pesar no olhar, que já nos tinha visto de manhã quando ia para o trabalho. Também tinha andado a boleia, sabia bem o que estávamos a viver. E, sem rodeios, lamentou não ter parado mais cedo, na crença de que alguém o fizesse, e ofereceu-se para nos levar para sua casa. Mas os nossos corações gritavam. Não era dia para desistir. Era de dia de andar para a frente.

Assim, deixou-nos com o seu número de telefone, num lugar já fora da cidade, onde por certo acreditou ser melhor; com o compromisso entre nós de que, caso ninguém parasse, nos voltaria a buscar para que dormíssemos em sua casa.

Queríamos ir para Katherine, a 300 quilómetros de Darwin, onde ainda estávamos: a mais de 3 horas de caminho e onde nos esperava um casal de couchsurfers.

Ali, naquele novo lugar, pararam mais carros. Nenhum ia na nossa direcção, a princípio, até parar, por fim, um jipe. Era um aborígene. Era enorme. Grande e gordo. Com uma voz foraz. Mas não nos intimidou: o seu olhar era doce.

Levou-nos, partilhou a medo a sua história e acabou por nos deixar na casa da nova família. Ela era irlandesa, ele australiano. Chegámos já de noite, tarde, pouco mais deu que para apresentações e dormir.

Mas além de cansados, estávamos serenos e desafogados.

Tínhamos conseguido!

E adormecemos assim, abraçados, depois de um banho refrescante, debaixo da nossa rede mosquiteira, com a ventoinha apontada para nós.

Ali, embora o plano fosse de ficar só uma noite, acabámos por pedir para alongar a nossa estadia – e ainda bem que o fizemos.

Descansámos. Ficámos em casa. Fizemos um batido de banana e manteiga de amendoim. Cozinhámos para todos. Lavámos roupa. Escrevemos e dormimos. A aldeia era muito pequena. A casa era grande e desorganizada. Tinham um gato. E baratas! E, o mais especial, tinham um cd da Mariza e já a tinham visto ao vivo.

Partimos então na manhã seguinte, rumo ao famoso Outback. De casa, recebemos uma boleia até um bom lugar para pedir boleia. Não estávamos preocupados, mas tínhamos em nós aquele receio miudinho: os últimos dias na estrada não tinham sido fáceis, mas trazíamos em nós dois fé. Muita fé. E amor.

Então, brincámos. Viajámos dentro da nossa própria viagem. E desfrutámos do que a vida nos estava a oferecer.

Com ternura.

O lugar era deserto e tinha poucas sombras. Esperámos por várias horas, com um calor já soberbo, embora fosse ainda cedo. Até parar uma carrinha. Era um rapaz com uma história incrível: trabalhava nas comunidades aborígenes contra o absentismo escolar das crianças e era apaixonado pelo que fazia.

Mas no lugar em que nos deixou, sofremos. Esperámos quase 7 horas, entre o desespero do calor e do vazio. Vimos a esperança dissipar-se. O nosso olhar pedido.

Estávamos ali, no outback. Só nós. E os aborígenes que pelas ruas deambulavam.

Os carros que passavam: e contávamo-los pelos dedos de uma mão.

E foi quando já fazíamos contas às horas, que parou uma senhora aborígene. Sorria, pelos olhos, na alegria de nos poder ajudar.

E assim se vê que foi perante aqueles a quem a história da vida foi injusta, que tivemos sorrisos, ajuda, amizade: os aborígenes, ou indígenas. Na verdade, pouco se sabe sobre estes fora da Austrália, pouco se fala ou desenvolve. Mas nós chegámos-lhes perto.

Ia de caminho para um funeral, porque não interessa quantos quilómetros são – dizia, a tradição que traz une sempre a família.

A viagem atribulada, feita já no escuro da noite, foi de 600 quilómetros, por estradas de longas distâncias sem iluminação, rede telefónica ou estações de serviço, com muitos cangurus e muitos destes infelizmente apanhados pelos carros. E vimos também muita vida selvagem, parte dela tão perigosa, como cobras, aranhas, centopeias, sapos; tudo venenoso e, até, letal.

E, na mais violenta das vivências, registámos o momento em que atropelámos dois cangurus, pequenitos, que se atravessaram na estrada. Assustámo-nos. Sofremos. E o carro seguiu.

Deixou-nos passava já das 23:00h, em Tennant Creek, no nosso destino. E, num bar, esperava-nos o nosso couchsurfer.

As apresentações foram rápidas, entre amigos e, sem demoras, estavamos de banho tomado, em sua casa, prontos da dormir. Cedeu-nos a sua cama de casal, o seu quarto e até a sua casa; porque mesmo tendo planos com a namorada, não deixou de nos hospedar.

No dia seguinte, debaixo dos muitos graus escaldantes e dolorosos, palmilhámos a cidade na procura de uma couchsurfer que também tinha aceite hospedar-nos. E por entre a confusão dos números das casas e dos nomes das ruas, lá chegámos.

E o seu ar condicionado e um refresco, nunca souberam tão bem!

Ali, na sua casa, conhecemos também outros dois viajantes, franceses, com a mesma rota que nós. Animámo-nos, silenciosamente, com a possibilidade de nos poderem dar uma boleia no dia seguinte, mas tinham o carro atulhado e definitivamente sem espaço. Pena, pensámos – novamente em silêncio entre nós.

Mas entre nós não silêncios: há palavras por dizer, mas que os olhos não deixam perdidas.

É muito mais que magia.

O sol nasceu radioso, na manhã seguinte. Vimos-lhe os raios atravessar a janela. Não estávamos ainda certos do nosso plano, não sabíamos bem dose deveríamos partir ou não, mas sabiamos que o mais certo seria seguirmos rumo à costa. Não tínhamos poiso confirmado, mas tínhamos o farnel pronto.

Era então já mais tarde que o previsto, quando ganhámos uma boleia do nosso couchsurfer até à estação de serviço da saída da cidade. Tínhamos 700 quilómetros para fazer até Mount Isa, mas ainda não tínhamos casa confirmada para ficar. Estávamos, portanto, entregues ao sabor do vento, esperançosos com o rumo que o dia que tínhamos pela frente podia levar.

Na bomba de gasolina tivemos pouca sorte perante os carros que fomos abordado. O calor, uma vez mais, era desesperante e só as pequenas sombras nos valiam.

Mas sorriamos. Sempre.

Até parar um jovem, estranho de tão extrovertido e humilde, que almejava encontrar quem lhe desse dinheiro para combustível. Lamentámos não poder ajudar; mas foi nesse momento que nos prometeu que se arranjasse quem o fizesse, que nos daria boleia.

A verdade? Não acreditámos que fosse acontecer.

A verdade novamente? É que aconteceu!

A viagem foi do mais hilariante, sendo que até para conduzir nos pediu. E, sem sombra de dúvidas, era um bom rapaz. Pobre, mas modesto, simples e despretensioso.

Mas, infelizmente, o combustível chegou ao fim, e acabou por nos deixar numa aldeia, novamente vazia, já perto do pôr-do-sol.

Pedimos boleia, enquanto o lusco-fusco nos permitiu. E, divididos entre a esperança e a certeza, enquanto procurávamos pelo melhor lugar para montar a tenda, fizeram-se de novo ouvir os seus raters.

Tinha uma vez mais encontrado quem lhe emprestasse dinheiro, e assim fomos até Mount Isa juntos.

Sem sítio para ficar, pedimos-lhe que nos deixasse no Mc Donald’s da cidade, onde pudemos conectar-nos à internet mesmo estando fechado e ver que tínhamos um couchsurfer para nos hospedar. Infelizmente, dada a hora, tardia, tinha entrado ao serviço e só nos poderia abrir a porta de manhã.

Não dormimos. Descansámos num banco de jardim à saída da cidade enquanto esperámos que amanhecesse. E consideramos este como tendo sido um dos dias mais duros em viagem.

Cansados, começámos com o nascer do sol à boleia.

Uma vez mais, não havia quem parasse: até encostar um jipe. Parecia tão bom para ser verdade, que nem queríamos acreditar. Mas embora tenha sido de coração e com boa vontade, adiantou-nos somente uns 2 quilómetros. Ia para uma quinta ali perto, mas ficámos gratos por nos ter dado o que podia.

Estávamos então num verdadeiro deserto, onde havia uma árvore despida, com uma fraca sombrinha.

Não eram ainda 7 horas e o calor era já intolerável – mas pouco ou nada podíamos fazer, senão esperar, com a ajuda da sombra do nosso chapéu de chuva.

Quase sem água e sem boleia, decidimos à vez render-nos ao sol e procurar por água. Nada mais nos restou senão caminhar e procurar por moradias onde pudéssemos pedir que nos enchessem as garrafas de água com água da torneira, mas a missão não foi fácil.

Na primeira casa, até água da mangueira do jardim nos foi recusada.

Desumano.

E depressa nos consciencializámos, ali mesmo, que as pessoas, diferentes, eram definitivamente pouco acolhedoras. Fizeram dos nossos dias, os dias mais insuportáveis desta viagem, por entre a sede que sentimos e os pedidos de ajuda negados.

Mas foi também nas pessoas, nas que menos esperávamos, que encontrámos consolo.

Mais tarde, conseguimos finalmente quem nos deixasse utilizar a mangueira do jardim para ter água e um camionista que nos quisesse levar. Foi por pouco tempo e deixou-nos na entrada de outra aldeia, onde voltámos a tentar ficar escondidos debaixo de uma árvore – mas foi uma grande ajuda.

Ali, conspirámos. Conversámos. Reclamámos. Rimos.

Dançámos. Suámos.

E fizemos apostas!

Até que parou uma alemã. Na verdade, passou por nós, não parou e voltou para trás, convencida de que tinha de nos ajudar. E assim o fez, levando-nos até à sua cidade, Julia Creek.

Quando nos deixou, não sentíamos as pernas. Estávamos extenuados. Exaustos. Esgotados.

Pelo calor. Pelo cansaço.

Mas não era altura de desistir.

De fato, acreditámos sempre que seria possível chegar à costa, a Townsville.

E foi por entre queixas e fraquezas, crenças e pedidos, que parou outro camião! E o melhor, tinha ar condicionado – o que por norma detestamos, pelas dores de garganta que nos provoca; mas que ali nos levou ao céu!

Ia até Richmond, onde nos deixou já ao anoitecer, ainda a 500 quilómetros da nossa meta.

A cidade era despovoada, uma vez mais. Não havia pessoas, nem supermercado, nada. Mas o clima era calmo e de segurança. Havia uma bomba de gasolina, onde até as coisas fora de prazo se vendiam, em promoção; e onde registámos o recorde de uma água de 50cl por 5 dólares. (Contudo, foi nesta mesma bomba de gasolina que nos sentimos salvos, no momento em que pedimos um copo com gelo e este nos foi cedido – porque não, a nossa água não estava bebível: de tão morna, tão mole).

Não quisemos dar-nos por vencidos de imediato, e por isso deixámo-nos ficar de dedo esticado até a noite cair na escuridão.

Depois disso, nada mais nos restou.

E, recordamos, estávamos tristes.

Mas por entre essa tristeza, sabíamo-nos fortes. E juntos!

Descobrimos então onde apanhar wi-fi aberta, numa biblioteca fechada. Tentámos, sem sorte, enviar alguns pedidos de couchsurfing à última da hora e jantámos as bem-ditas papas de chia e açaí que trazíamos ainda na mochila. Estava tanto tanto calor, que mais nada nos apetecia.

E, para ajudar, havia mosquitos, aranhas, bichos e bichinhos por todo o lado.

Sem remédio, e na tentativa de remediar, fomos até ao posto de polícia, que encontrámos no mapa que trazemos, perguntar onde seria seguro acampar: mas nem isso estava aberto.

Pelo caminho, contudo, descobrimos uma torneira com mangueira, no jardim do posto dos correios: e foi ali mesmo que tomamos banho, por entre uma aventura desmedida, risos e cumplicidade.

Vestimos roupinha lavada e montámos a tenda – no jardim da biblioteca. E assim, afortunados, estávamos num campismo de luxo, com banhinho, wi-fi e luz.

E, a bem dizer, a tristeza tinha dado lugar à paz. À esperança.

E ao amor, sob as estrelas.

Uma vez mais, o nascer do sol chamou por nós: mesmo que moídos.

Mas estávamos de ‘forças’ renovadas. E a esperança no auge!

Pusemo-nos à boleia e cruzámos os dedos. Tudo a correr bem, e a noite seria diferente!

Mas a manhã passou-se: e nada.

– A não ser a inesperada visita dos amigos franceses que havíamos feito em Tennant Creek. Cruzaram-se ainda no nosso caminho e, nesses instantes, pararam mais que nunca outros carros, enquanto continuávamos a pedir boleia: pensando estes sempre que era o carro deles avariado e não propriamente nós a pedir boleia. –

Já de tarde, e quando rogávamos já pragas a todos os deuses das boleias, parou com a maior tranquilidade deste mundo, um francês com a sua campervan, com o mesmo desitino que nós!

Foram largas horas de viagem, mas avistámos finalmente a costa – onde, adiantamos já, fomos tão felizes!

Percebemos, ali, que o outback australiano é um difícil de descrever e fácil de sentir. Descobrimos, por lá, uma versão do país muito verde e ao mesmo tempo um cenário desértico, avermelhado, plano e sem fim. Descobrimos depressa que o céu parecia palpável e que era talvez o mais bonito que alguma vez tínhamos visto.

E também as estradas infinitas no horizonte e cor-de-laranja fizeram o nosso encanto, ao longo de vários dias, onde as temperaturas médias estiveram sempre acima dos 40 graus – mas onde andar à boleia foi um verdadeiro desespero.

Naquele momento, foi difícil deixar partir o nosso novo amigo, sozinho na sua campervan, entregue ao destino da noite; enquanto a nós nos esperava um banho refrescante e uma couchsurfer para nos acolher. Mas, no fundo, viajar é isto mesmo.

Uns dias de sol, outros de chuva.

E foi assim que, com pequenas ajudas e muitas mais histórias, conseguimos fazer 2500 quilómetros em sete dias.

Abraçados, emaranhados na nossa paixão.

Entre nós.

E pelo mundo!

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Timor em português!

De sorriso sincero no rosto, naquele tom de pele castanho, perdido no olhar de amêndoa doce, escuro e característico, que de uma forma tão genuína veste quem por lá nasceu. É Timor-Lorosae. São timorenses.

Assim chegámos a Timor-Leste, depois de com esforço atravessarmos a fronteira com Timor Ocidental, ainda na Indonésia. São a mesma ilha, têm uma história triste comum*, mas de ambos os lados deliram com a pele branca e o nariz proeminente de qualquer estrangeiro que por ali ande.

*Porque a história de Timor-Leste tem pano para mangas, mas consegue resumir-se à independência de Portugal em 1975 (sendo até então conhecido como o Timor português), tendo logo sido invadidos; o fim ocupação Indonésia deu-se em 1999 e sua independência total em 2002  – o que faz deste um país muito novo.

Na fronteira tirámos mais fotografias com locais que em qualquer outro sítio nesta viagem; não que noutros países, como por exemplo nos da Ásia Central, não tivessem também esse desejo, mas tinham também muito mais vergonha. Ali, os mais comedidos tiravam de longe, os mais destemidos vinham até nós. Abraçavam-nos, agarravam-nos, sorriam, pousavam para a foto e faziam filas. Foram sem duvida dezenas de fotografias, depois de termos passado a noite num ferry que abanava mais que uma rolha em alto mar e uma madrugada e manhã à boleia, sem descanço.

E mais, era Ano Novo! Sim, era dia 1 de janeiro de 2017, no auge da euforia de uma nova primavera.

Estavam, por isso, todos em nosso redor felizes e reluzentes, animados com a chegada de mais um ano. E nós estávamo-lo também, mas trazíamos em nós uma incerteza tamanha: a de não sabermos se iríamos conseguir chegar até Dili, a capital, naquele mesmo dia. E tínhamos em nós a consciência vincada, dos avisos que nos foram feitos, do perigo que seria chegar à capital já de noite e sem alguém para nos receber. Faltavam-nos, ali mesmo, umas três horas de caminho, por 100 quilómetros por fazer, por estradas esburacadas e paisagens à beira mar criadas.

E ali mesmo, no edifício fronteiriço, sorrimos. Havia já, quem de cor falasse português – e que mais podem dois portugueses querer?

Sorrimos! E sorrimos de novo, entre olhares cúmplices e confiantes, apaixonados e tão, tão cansados.

Éramos nós.

Atravessámos o famoso arco de boas vindas a Timor-Leste (em português escrito!!), sem medo, e a pé, e depois de carimbados os passaportes, seguimos. E estávamos finalmente no nosso tão desejado destino!

Ali, sabíamos já que encontraríamos uma segunda casa e que poderíamos descansar quanto tempo quiséssemos. Era família do coração – aquela que temos a sorte de poder escolher.

E embora estivéssemos muito, muito felizes, estávamos também exaustos por tudo aquilo que tínhamos vivido até então, depois de duas noites mal dormidas e muitas horas a bordo de um ferry mal-amanhado, depois de celebrado o ano novo com a chegada à ilha de Timor e o barulho de todas as motas em nosso redor.

Depois de termos atravessado a fronteira a paisagem não era diferente: árida, quente e pobre, numa estrada infinita de alcatrão velho e barracas de chapas de zinco vazias, com pilares de pau. Ao lixo pelo chão já vínhamos também habituados e por isso a diferença no olhar foi pequena.

Já não tínhamos muito que comer, senão umas mangas de sobra e uma bolachas de limão; mas nada disso interessava. Só queríamos chegar a Casa! Das bolachas fizemos almoço e demos corda aos sapatos.

As sombras eram raras, mas sabemos bem que as fomos aproveitando conforme podíamos. E a cada escasso carro que víamos passar, pedíamos boleia! Lá iam parando, e o entusiasmo era tanto que já só falávamos a nossa tão querida língua, sem tão pouco nos questionarmos sobre isso. Era instintivo e automático! E tão, tão bonito.

Demorou pouco até conseguirmos a nossa primeira boleia, no momento exacto em que nos conseguimos abrigar do sol para beber um pouco de água. E é tão engraçado ver como nos lembramos de tão pequenos pormenores.

Eram dois senhores, policias, militares ou guardas, não conseguimos precisar, mas decerto trabalhadores na fronteira. Iam por apenas dois quilómetros, até ao café mais próximo. Mas foi uma grande ajuda! – por vezes, há quem não pare por não ir longe, mas tudo aquilo que muitas vezes precisamos é de nos sentar dois minutos e renovar a esperança. E assim foi!

Já perto de uma pequena ponte que cruza um rio, sujo, ficámos bem! Atravessamo-la a pé e, do lado de lá, voltámos a conseguir uma boleia. E desta, a certeira! Era uma família, um carro cheio. O pai, vice-presidente da CPLP, a filha estudante de medicina e fluente em inglês. A avó, professora, falava bem português. Recusaram a principio dar-nos boleia, porque sem dúvida, não havia nem um pequenino acento num banco disponível. Mas havia a bagageira! E a sede de avistar Dili era tanta, que nem hesitámos!

Estavam juntos com um grupo enorme de pessoas, que ali passavam num passeio em forma de comemoração pelo aniversário de um dos membros da família. E com todos eles, fomos parando para visitar praias, miradouros e até à verdadeira festa de aniversário numa colina nos levaram. Havia cerveja, sumos de banana com gás e até gente a falar português!
(E já para o fim, havia também um infinito de lixo espalhado e abandonado)

À chegada a Dili tínhamos instruções (dos amigos que nos iriam receber, e que à data estavam em Portugal), para que telefonássemos ao Senhor Filomeno ou à Mana Ela. Tinham ambos ficado com a chave e ambos saberiam como nos orientar.

Assim, ainda no carro, pedimos que telefonassem a um deles, mas nem tudo correu como previsto! Timor-Leste é perito nestes acontecimentos, mas não estávamos ainda bem cientes disso. Tudo leva o seu tempo e tudo exige a sua calma.

Primeiro, não havia cobertura. Passado umas horas, ninguém atendia.

Já mais tarde, diríamos até no lusco-fusco, o telefone através do qual tínhamos ligado já não estava no carro, e a neta, intermediária, também não. Acabámos ainda assim por nos conseguir explicar e voltar a ligar: sempre na incerteza e sem saber se o Senhor Filomeno teria ou não ligado de volta para o telefone anterior.

Conseguimos quase à chegada – e que mesmo assim leva sempre uma hora no transito caótico da entrada de Dili – falar com a Mana Ela. Ou assim pensávamos que tinha sido. E estava tudo combinado. Às 19h na catedral, a famosa catedral. E assim foi. Fazia-se acompanhar de um senhor com quem falámos em português, e por defeito, assumimos de imediato ser o senhorio, Senhor Filomeno.

Caminhámos então juntos, a transbordar de felicidade e em paz por termos conseguido chegar, por entre o bairro dos Professores, num clima de pobreza, estradas tortas e lixo perdido.

Os sorrisos vinham-nos dos olhos. Puros, singelos. Perdidos por tudo o que víamos e na simpatia daqueles que se aproximavam. É que caminhando pelas ruas fomos sendo sempre cumprimentados com um ‘Boa tardi, vai aonde?’ ou, em língua tétum, ‘Botarde, Ba ne’e bee?’. (Mas vinhamos já treinados da Indónesia, habituados ao ‘mauke mana?’). E é o cumprimento dos timorenses aquele que reconhecemos como sendo um um gesto comovente. Um aperto de mão rápido e solene e, depois, a mesma mão usada no cumprimento é levada ao coração – o que simboliza respeito pelo cumprimentado. Porém, percebemos, nem todos os timorenses o fazem.

– A língua mais falada durante a ocupação da Indonésia, era claro o indonésio (o que ainda hoje se percebe ter acontecido). Durante esse mesmo período a língua portuguesa foi proibida. Hoje o tétum é o mais falado na capital e o português é também língua oficial.  –

Rua para frente, rua para trás, e lá chegámos. A casa, fria e vazia, dizia-nos pouco, naquele momento. O cheiro incerto, a falta de personalidade e, sem bandeira portuguesa, fez-nos questionar se estaríamos na casa certa.

Armários vazios. Não, não podia ser.

Sem falar português, aquela que acreditámos ser a Mana Ela e que depressa percebemos que não seria, pouco entendia do que se estava a passar. E aquele que a acompanhava, e que achávamos ser o Senhor Filomeno, também não o era.

Wi-Fi nem vê-la. Telefone também não, que a pulsa (o saldo) dos telefones tinha terminado.

Estávamos portanto entregues ao vazio.

Se um de nós emana calma, o outro contrabalança. E ainda bem que assim o é, em forma de equilibro e muito amor. Naquele momento, não havia cansaço que vencesse: precisávamos de descobrir onde ficar.

Um mês antes havíamos encontrado entes amigos na Malásia, na escala que faziam rumo a Portugal para passar o Natal. Por sorte, tínhamos ainda uma fotografia tirada juntos guardada e foi essa a nossa salvação! Apressámo-nos a mostrá-la e guardamos até hoje as suas caras de espanto. Conheciam bem, afinal, o casal da casa que procurávamos, mas não faziam ideia de onde ficava. E foi nesse preciso momento que percebemos que não poderíamos estar com nenhum dos dois que havíamos contactado.

Isto, isto é Timor-Leste!

Espera atrás de espera, e esperámos mais um bocadinho. Com  calma, muita calma.

Acabou então por aparecer o Senhor Filomeno, o verdadeiro, proprietário da casa e português falante. Este, depressa nos levou a casa. À verdadeira casa, àquela que percebemos de imediato ser familiar. Aquela a que agora também guardamos como nossa.

E, finalmente em casa, sentiamos pouco mais que o nosso coração a bater.

Havia uma gatinha – e toda a bagunça que ela se tinha encarregue de fazer na ausência dos donos.

E havia um lar.

Estávamos folgados!

Afortunados. Felizes.

Pena só tinhamos por haver ainda mosquitos doenças tropicais com as quais tínhamos uma vez mais de nos preocupar; e por não haver internet… mas sobre isso, não sabíamos ainda nem de perto a realidade!

Sem chances de avisar quem quer que fosse sobre a nossa chegada, demos jeito à bagunça, alimentámo-nos nós e alimentámos a pequena SUAI, abrimos o sofá cama da sala e dormimos. Dormimos muito. Muito. E sonhámos. E descansámos.

A manhã nasceu na mesma euforia com que a noite se pôs, sendo ainda assim já dia 2. Pouco importava. A festa fazia-se ainda, pelo Ano Novo. As mesmas motas, o mesmo barulho. A mesma felicidade.

E preparávamo-nos nós para tratar de almoçar, quando se abre o portão, naquele também seu som tão característico..

Eram eles! A Débora. O David. E a Madalena. Estávamos tão emocionados: esperámos tanto e tão ansiosamente por aquele momento!

A Madalena é uma jovem timorense que se encontra a viver com eles por ser do distrito e necessitar de estudar na capital.

E começámos assim o primeiro de vinte e dois (especiais) dias juntos.

Podemos agora escrever sobre tudo o que fizemos. Tudo o que vivemos. Tudo o que partilhámos, conversámos, discutimos, refletimos e aprendemos. Tudo o que sorrimos. Tudo o que fomos. Mas nada se aproximará daquilo que guardámos no coração.

Começámos por conhecer recantos de Timor e a vida por lá sentida. Aprendemos os cantos à casa e o ritmo a que nela se vive. Fomos aos supermercados do costume, o Páteo ou o Leader, e consciencializámo-nos do custo de tudo. Em dólares americanos, a preços exurbitantes tendo em conta o país, pobre. Os produtos  não são escassos, mas dependem da hora, dia, momento ou época. É também difícil de encontrar alguma coisa à primeira e dar azo a desejos é praticamente impossível. Faz-se a festa com pequenas coisas e o capitalismo torna-se limitado. Já o consumismo é grande e cada vez maior, mas não há muitas empresas e, uma vez mais, a escolha é pouca. As prioridades também as encontrámos invetidas: primeiro vêm as motas e os telemóveis e, só depois, a saúde e a educação. E o (pouco) dinheiro, voa.

Assim, descobrimos que ser-se local é duro, mas ser-se estrangeiro também não é fácil. Uma casa com condições mínimas leva mais de meio ordenado – não local. E um timorense, tendo em conta o que recebe, não é fácil de se perceber que decerto viverá com o mínimo dos mínimos. Comer mais que arroz e os típicos fritos, só em dia de festa. Tudo isto, graças à presença da ONU, que avançou com missões de paz no terreno em 1999 e que teve sempre poder de compra acima da média.

O país também não é grande produtor. Arriscariamos dizer que por lá se vive em preguiça. Dá trabalho fazer diferente ou cultivar. Não têm habitos de agricultura e não aproveitam, conforme poderiam, o potencial das suas terras. A produção de café é significativa, mas tendo em conta o clima e os solos, haveria muito mais para fazer e criar. Morangos só em dia de festa. Bananas, abacates e papaias têm com fartura, mas em escala insignificante face ao que poderia efetivamente ser. Também os preços, uma vez mais, são insuportáveis para o produtos em questão – frutas e legumes locais.

Encontra-se, contudo, uma vasta variedade de produtos portugueses, e muitos até da marca branca do Continente ou Área Viva. Há azeite Galo, bolachas maria, farinha Branca de Neve ou água Luso.

Desta forma, durante a nossa amada estadia, aproveitámos para por em dia todos os nossos dotes culinários. Demos asas à imaginação e muita cor à nossa alimentação vegetariana. Cozinhámos tudo quanto desejámos, criámos pratos lindos e saborosos e, o melhor, fizemos pão e bebidas vegetais caseiras todos os dias.

Mas embora Timor-Leste seja um país lindo, com uma cultura linda e pessoas lindas, que nos enchem o coração com o seu olhar e a forma como dizem “Portugal é nosso!!”, não só a alimentação, a agricultura e os preços são uma lacuna. Há mais, e mais grave.

Há currupção. Ao mais alto nível. E há o sistema educativo. E há currpução no sistema educativo – que está em desenvolvimento, mas com carências e lacunas visíveis. E se é a educação das pessoas que pode mudar o mundo, então Timor-Leste começa a perder-se de pequenino. As escolas não são propriamente eficientes e a qualidade do ensino deixa muito a desejar. As pessoas habituaram-se ao facilitismo e também não encaram as regras com bons olhos. Horários, metas, avaliações… são tudo termos aborrecidos e, até, desconhecidos. Também o ensino privado deixa muito a desejar e a melhorar. As bases acabam por ser as mesmas e o sentido de responsabilidade por parte dos professores e alunos é algo desvanecido. A perspetiva do deixa-andar e os sorrisos sossegados no rosto acabam por resolver até os maiores problemas; e os jovens de hoje em dia não encontram objetivos que os façam lutar por uma educação rigorosa. Gostam de brincar, não importa a idade que tenham. A cultura de rua está muito presente e aplica-se à maioria das famílias, que retratam um povo relaxado e com pouca iniciativa, mesmo que feliz.

Não menos grave é o estado do país, das cidades, das aldeias, das ruas, das estradas. E das casas. O lixo é um problema atual e a sua falta de tratamento também. Fazem queimadas sempre que assim se lembram e em cada canto ou recanto, o mais provavel é que se tropece num monte de plástico, papel e resíduos alimentares. Timor-Leste é claramente um país em vias de desenvolvimento, mas o dinheiro mal gerido leva a que muitos destes problemas se arrastem e alastrem.

Em consequência do problema do lixo, há também cada vez mais doenças e doenças transmitidas por mosquitos. O sistema de saúde deixa também muito a desejar. As tradições timorenses, crenças e espiritualidade, fazem com que muitos se afastem dos cuidados médicos. Os que a estes recorrem, nem sempre são efetivamente tratados ou conseguem vir de lá esclarecidos.

No fundo, foi para nós engraçado ver como é que um pais pequeno funciona como um pais grande, mesmo que com fracas condições: têm ministérios, televisão, embaixadas, doutores (ou aspirantes), rádio, universidades… e pobreza, lixo, fumo, estradas sem asfalto.. tudo isto junto. E com uma beleza inegualável. E tão inegualável!

Aprendemos muito. E muitas coisas.

E uma das mais engraçadas foi a como ir ao banho sem que fossemos atacados por um crocodilo:

Estávamos na Embaixada de Portugal, depois de termos feito um pedido de informação sobre a renovação do passaporte por e-mail. Conseguimos com isso que nos fosse remetido um e-mail automático (sem que soubessemos que o era), com  a marcação de uma reunião para as oito horas da manhã. E lá estávamos nós então, com outras cem pessoas, todos à espera da mesma reunião. O calor era tremendo, como sempre, e o suor escorria-nos pelo corpo – como todos os dias. Enquanto esperávamos, aproximou-se um senhor, que sem hesitar, avançou em português. Começou por perguntar de que zona de Portugal vinhamos. Trava-nos por Mana e Maun (mano). E ria, perdido, por entre as mil histórias de que se foi lembrando sobre a sua antiga patroa, também ela portuguesa. Margarida, dizia.

A conversa foi, e tanto foi que ia já naquilo que não podiamos perder. Falou-nos de Baucau e de tantos outros lugares mágicos – muitos dos quais não chegámos a conhecer. Mas falou-nos também do quanto tinhamos ainda por nadar nos seus mares azuis. Confessámos-lhe então jamais ali fazê-lo, com medo de um ataque de crocodilo. E ele, tão querido, riu-se. De novo!

Ensinou-nos então, de coração aberto e com crença no olhar, que bastaria enrolar em cada tornozelo e pulso uma folha de palmeira. Desta forma, os crocodilos saberiam que somos família. Sim, família. E é aqui que está a graça, a dádiva e a inspiração. A convicção e a fé são inegualáveis. Acreditam que o espírito dos seus avós vive em pequenos crocodilos, e por isso os alimentam e protegem. E bastaria assim as folhas nas extremidades para que nos reconhecessem.

Perguntámos-lhe então, ‘E se não nos reconhecer e acabar por nos comer?’, ao que sem pensar, encolhendo os ombros e muito sério disse… ‘Paxiênxia’!

Da Embaixada não troxemos nada mais senão esta aventura e uma dor de cabeça em burocracias. Documentos, documentação, papelada e trabalho: um vazio e uma lentidão, por Timor.

E por entre tantas outras pequenas aventuras, fomos também a uma festa na escola. À cerimónia do içar da bandeira timorense no Ministério da Educação. À Lusa, à RTTL e à rádio, para diferentes entrevistas. À escola portuguesa e ao cemintério de Santa Cruz.

Jantámos com um casal de portugueses aventureiros, exploradores, criativos e generosos, com uma história de amor com o mundo e por Timor: a Katy e o Ricardo (podem conhecer a história deles aqui); e partilhámos um pôr-do-sol e um sumo natural com um amigo de uma amiga, que agora é nosso amigo também, mentor da nossa ida posterior ao programa de rádio português!

E no cimo dos nossos corações ficou também registado o nosso encontro com uma família muito especial:

Há vários anos, num programa de intercâmbio de três meses para docentes entre Portugal e Timor-Leste, conhecemos a Ricardina. A Ricardina descobriu muito connosco – o que era trânsito organizado, um supermercado limpo, uma cama com lençóis, um autocolismo ou um elevador. Descobriu o que era um país desenvolvido e soube integrar-se nele. Pintou as unhas. Foi ao cabeleireiro. Melhorou o seu português e engordou vários (muitos) quilos. Mas foi muito mais aquilo que ela nos ensinou a nós. A sua preserverança, a sua luta, a sua garra. A sua vergonha, a sua paz, a sua calma. O seu coração gigante, naquele corpo pequenino. Aquela voz de melodia suave e tom neutro. O seu sorriso, o seu olhar. As suas mãos ásperas e tão suaves. Sempre frias! “Ai senhora”, “Mana Joana…”; e tantas outras expressões em nós marcadas.

Passaram-se os anos, os meses, os dias; passou-se o tempo. E as saudades nunca passaram.

Despedimo-nos um dia, perto do aeroporto, no hotel onde a deixámos. A ela, ao António (que também ficou nas Caldas) e a todos os restantes colegas timorenses. Chorámos, na promessa de que um dia a voltariamos a encontrar, em Timor-Leste!

E a promessa cumpriu-se, até mesmo quando já nem ela acreditava. E a sua voz estremeceu, no dia em que lhe telefonámos, pela primeira vez, e lhe dissemos que estávamos ali mesmo, em Dili. Sorriu pelo telefone. Sorriu tanto, e chorou de novo. Era tudo, e era principalmente a saudade em voz.

Encontrámo-nos várias vezes durante a nossa estadia. Em Dili, em Ermera, em Gleno e também no aeroporto – desta, foi ela a deixar-nos partir.

Partilhámos momentos especiais. Visitámos-lhe a casa, a vila, a escola, a aldeia. A provincia, a casa dos pais, a estrada. O tempo. Demos-nos tempo e tempo para estar. Conhecemos-lhe finalmente os filhos. A familía. O lar. E ela, sempre envergonhada, abraçava-nos a cada emoção forte. Queria dar-nos a conhecer tudo aquilo que tinha e sabia, e tapava os olhos de medo. Sabia bem, guardava bem, as condições em que sabia vivermos em Portugal, e que em nada se assemelham àquelas em que vive em Timor.

Aprendemos assim a entender tudo aquilo que não entendiamos em casa. Percebemos tudo aquilo que não conseguiamos perceber outrora. Cada comportamento, cada atitude, cada gesto… é tudo uma questão de cultura. De vida. De história. E a história da Ricardina é agora também nossa.

Na despedida ficou a promessa. Voltamos a encontrar-nos em 2021. Esperamos por ti.

E também na despedida, de Timor, daquela que foi a nossa casa, naquele que é o lar da Débora e do David, vivemos momentos de deleite e bem-estar, paz e amizade. Aproveitámos o sol para subir ao Cristo Rei, avistar a Praia dos Portugueses e saborear a famosa água de côco e os petiscos da Mana Fina, na Praia da Areia Branca.

De toda a estadia, acabámos por não ver crocodilos… mas também não fazíamos questão!

E não experimentámos andar de microlete – o transporte público mais afamado, porque nunca foi preciso. Mas que são únicas só de ver, são! Por fim, já na hora da partida, fomos presenteados com um “tais” (pano em tétum): os lenços ou as faixas de tecido timorenses, muito célebres e tão representativos.

Guardamos tudo em nós. O vivido. O por viver. O visitado. E o que ficará para a próxima.

No nosso coração.

Juntos. Sempre, sempre juntos.

Timor-Leste é especial. 

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